Temor e Tremor: Abraão Sob a Perspectiva Kierkegaardiana

“Deus disse: toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac; e vai a terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que Eu te indicar.”

Na verdade, Isaac era o segundo filho de Abraão.1 Porém, era o filho mais amado, em quem repousava a promessa da posterioridade abraâmica. Abraão não só desafiou a infertilidade de Sara como a infertilidade da velhice em geral, e esperou cem anos para ver a promessa divina se cumprir, para no gozo de sua paternidade ser convidado pelo mesmo Deus a sacrificar sem nenhum motivo aparente o seu tão estimado filho. O pedido divino não é somente um absurdo por exigir que um pai assassinasse com as próprias mãos o filho: o filho, no caso, era aquele que haveria de constituir as “diversas nações”. O absurdo reside principalmente nessa contradição. É a partir do cenário apresentado no capítulo 22 do Gênesis, que o patriarca do existencialismo, Soren Kierkegaard, na obra Temor e Tremor, analisará a situação do patriarca da fé.

Todos nós sabemos o desfecho da passagem. Abraão leva a cabo o sacrifício, mas, no derradeiro momento, o anjo do Senhor satisfeito com a demonstração de fé o impede de proceder e concede-lhe finalmente todas as graças prometidas, dando início à longa jornada dos hebreus. A princípio poderíamos responder que Deus não é arbitrário (como havíamos discutido em Eutífron), e que no fim não passava de uma provação que resultou na esperada afirmação da convicção de Abraão, mas Kierkegaard nos convida a olharmos Abraão sobre outra perspectiva: a perspectiva de um indivíduo diante do absurdo.

O patriarca não sabia que ao seu lado havia um carneiro que seria sacrificado no lugar de Isaac. Muito menos que no último momento um anjo apareceria e o impediria. Sem conhecer a intenção divina, sem jamais esperar o recurso deus ex machina da piedade, sem implorar pelo “afastamento do cálice”, ou nenhuma das outras possibilidades sugeridas por Kierkegaard, Abraão escalou o monte, por três dias permaneceu em silêncio, se limitou a responder dubiamente o questionamento de Isaac – “Deus, providenciará uma ovelha para o holocausto, meu filho.” – e chegou ao ápice de erguer a faca para matá-lo. Jó, outro ícone bíblico da fé chegou a questioná-Lo, mas Abraão não hesitou diante da aflitiva situação e saltou ao desígnio de Deus em um pleno movimento de fé. Para o filósofo dinamarquês, a entrega de Abraão é o que o torna a figura mais fascinante da história universal.

Viu-se os que se apoiaram em si próprios de tudo triunfarem e os outros, fortes da sua força, tudo sacrificaremmas o maior de todos foi o que acreditou em Deus. E houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amormas Abraão foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é a fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é a loucura, pela esperança cuja forma é a demência, pelo amor que é ódio a si próprio.2

Temor-e-Tremor-Abraao-perspectiva-kieerkegaardianaSacrificio di Isacco por Luca Giordano

Os Três Estados Existenciais
Kierkegaard compreende a existência de três estados existenciais. O primeiro deles é o estágio estético. O nível singular de existência do Indivíduo, em que toda potencialidade se resume no imediato, no amor-próprio, nas sensações, no psíquico, nas expressões ocultas. Contudo, a tarefa do Indivíduo é exprimir-se, manifestar-se, “despojar-se do seu caráter individual para alcançar a generalidade”. O Indivíduo tem seu telos no geral. O geral nada mais é do que o estágio ético, onde o Indivíduo se submete à moral. Nesse estágio ele pode realizar completamente suas potencialidades através da subjetividade das escolhas. Como o telos do Indivíduo é alcançar o geral seria contraditório reivindicar a individualidade uma vez no estágio ético. No entanto, Kierkegard dirá que é possível tal movimento. Uma vez no geral o Indivíduo pode expressar sua individualidade se isolando sobre o geral. Executado por intermédio da fé o movimento paradoxal o coloca no estado religioso.

Com efeito, é a fé esse paradoxo segundo o qual o Indivíduo está acima do geral, mas de tal maneira que, e isso importa, o movimento se repita e, por consequência, o Indivíduo, depois de ter permanecido no geral, se isole logo a seguir, como Indivíduo acima do geral.3

Quando o fenômeno acontece, o Indivíduo anteriormente exposto ao geral, retorna à categoria individual, mas não na esfera estética: partindo do geral ele se encontra individualmente em “relação absoluta com o absoluto.” Kierkegaard ressalta veementemente que sem fé tal movimento, do geral de volta para o individual, não existe. Em outras palavras, a fé é capaz de suspender o telos da moralidade.

Suspensão Teleológica da Moralidade
Kierkegaard compara o caso de Abraão a outros três casos de filicídio na história: Agamemnon, Jefté e Brutus.4 Os três são heróis trágicos, heróis da esfera ética. Suas responsabilidades estão para o outrem, o geral. Nessa esfera, a relação entre pai e filho pode ser ofuscada por um dever moral mais alto. Agamemnon tem o dever de liderar os aqueus para a cidade de Troia; Jefté tem o dever de cumprir a sua promessa para com os israelitas e para com Deus; e Brutus tem o compromisso republicano com o povo romano. Embora a dor que sintam seja incomensurável, lhes resta o consolo de terem tomado a atitude moralmente correta. Seus compatriotas são capazes de compreenderem as circunstâncias que lhes conduziram ao extremo e compartilharem as lágrimas. Por sua vez, Abraão não é um herói trágico. Ninguém chora por sua angústia. Tudo o que lhe resta é o silêncio, visto que nem ele pode o compreender o absurdo que se vê adiante. A razão é insuficiente para explicar, dado que a única condição moral existente, a do amor paterno, se impõe contra o sacrifício.

Se pudéssemos evocar a ira da divindade, essa cólera teria unicamente por objeto Abraão, cuja conduta é assunto estritamente privado, estranho ao geral. Assim, enquanto o herói é grande pela sua virtude moral, Abraão é-o por uma virtude estritamente pessoal. Na sua vida, o moral não encontra mais alta expressão que esta: o pai deve amar o filho.5

Sua posição entre em conflito com a moral, pois não há um dever maior que constranja Abraão a sacrificar seu filho, senão o pedido de Deus. O amor paterno se torna um obstáculo, uma tentação para a realização da vontade divina. Em outras palavras, a relação geral se opõe à relação absoluta. A saída encontrada por Abraão para o paradoxo é saltar no absurdo. Quando Abraão realiza o salto de fé, passa do geral para o individual, em uma relação direta com o absoluto. Há então a suspensão da moral.

Considerações Finais
Kierkegaard dedica um capítulo inteiro da obra Temor e Tremor ao elogio de Abraão. Para o filósofo, Abraão é um dos poucos autênticos cavaleiros da fé, aquele que conseguiu realizar integralmente o movimento da fé. O patriarca poderia ter seguido outras resoluções, poderia ter duvidado, poderia ter recusado o amor ao filho e nem por isso deixaria de ser lembrado. Até mesmo Moisés golpeou a pedra de onde jorraria água sem acreditar.6 Mas a grandiosidade abraâmica está no fato de ter entregue Isaac enquanto o amava, pois do contrário a prova não teria sentido. Ele entrega Isaac no finito para recebê-lo no absurdo. Nessa dialética que envolve o entregar e o receber, passar do ético para o religioso, está a essência da fé. Para os cavaleiros da fé (continua aqui) que decidem cruzar o geral, a subida até o pico do monte Moriá é uma jornada solitária, angustiante e desesperadora. Afinal, como lembra Kierkegaard, é muito fácil regular a vida pela ideia do Estado ou da sociedade. O difícil é se exprimir particularmente diante do absurdo.


1Abraão havia concebido Ismael com a escrava egípcia. (Gênesis, capítulo 16).

2KIERKEGAARD, Soren. Temor e Tremor. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.118

3Ibid., p.141

4Na tragédia de Eurípides, Ifigênia em Aulide, Agamemnon é obrigado a sacrificar a filha para aplacar a fúria da deusa Artemis que lhe impedia de prosseguir para Tróia; Em Juízes, cap. 11, Jefté promete oferecer em holocausto a primeira coisa que viesse ao seu encontro, caso Deus lhe concedesse vitória sobre os amônitas. Acontece que após a vitória é sua filha quem o recebe; No Ab Urbe Condita de Tito Livio, o fundador da república romana, Lucio Junior Brutus, é obrigado a condenar seus dois filhos à morte pelo envolvimento na conspiração contra a república.

5Ibid., p.144

6Embora ache a referência de Kierkegaard ao capítulo 20 de Números um pouco confusa, decidi mantê-las pois serve ao propósito.

 

Um comentário em “Temor e Tremor: Abraão Sob a Perspectiva Kierkegaardiana

  1. […] palavras de Kierkegaard, significa uma “suspensão teleológica da moral” (sobre isso leia mais aqui), na qual Deus não pode ser considerado contraditório, nem arbitrário, pela razão humana, […]

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