A Dialética do Esclarecimento (e da Dominação)

O livro, Dialética do Esclarecimento, escrito em conjunto por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, é o esforço em compreender uma das questões que assombraram o século passado: a razão da história humana, em vez de ter encontrado o progresso, regredir em uma nova forma de barbárie, o fascismo. Alguns pensadores já haviam tentado explicar as razões que haviam permitido o surgimento do fenômeno durante o andamento incerto da Segunda Guerra Mundial. A crítica dos liberais ganhou larga aceitação, porque logo em seguida outro fenômeno totalitário, ainda que mais antigo, tomou a atenção do ocidente; mas essa não é a única diferença em relação aos liberais. Adorno e Horkheimer derivam a condição moderna do processo dialético do esclarecimento. O esclarecimento alcança seu ápice no Iluminismo, mas, e é importante adiantar, não se prende a uma linha cronológica precisa, nem se limita ao Iluminismo, visto que para eles o caráter de dominação se mantém constante na história.1 De qualquer forma, são críticos do otimismo típico do sistema iluminista e seu racionalismo. Por outro lado, os liberais, embora igualmente vejam o nazifascismo como uma reação ao fracasso da experiência dos séculos XVII e XVIII, em geral, defendem justamente o otimismo (não ingênuo) do esclarecimento como antídoto.

Para Adorno e Horkheimer, o esclarecimento era o ideal de propiciar à humanidade a sua maioridade, a libertação do medo mitológico e a emancipação pelo saber. Resumindo pode se dizer que “o programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo”.2 Contudo, o casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza só pode ser celebrado através da dominação. Isso porque a racionalidade expressa desde o princípio no seu funcionamento a lei da conservação.

O sistema visado pelo esclarecimento é a forma de conhecimento que lida com os fatos e mais eficazmente apoia o sujeito na dominação da natureza. Seus princípios são o da auto-conservação. A menoridade revela-se como a incapacidade de se conservar a si mesmo.3

Se a auto-preservação é o juízo a priori que a razão emite em toda a relação com o mundo empírico, todo o contato do homem com a natureza já é precedido pela intenção de dominar. Embora ambos não se remetam a Hobbes, compartilham a mesma identificação pessimista da essência natural humana. De certa forma, assim como o filósofo inglês identificava a causa da guerra na tentativa de dominar para antecipar o domínio, processo voltado para auto-conservação do sujeito, Adorno e Horkheimer determinam que, uma vez que a ciência permite a dominação da natureza, e o medo da menoridade significa a incapacidade de conservar a si mesmo, a necessidade de estender o domínio sobre toda a matéria se torna a consequência inevitável do esclarecimento.4

Não à toa, o esclarecimento coincidir no desenvolvimento da técnica, cuja mentalidade está resumida na máxima, saber é poder. O domínio da técnica, por sua vez, não contém em si o seu fim, mas está voltado como um instrumento para o fim que o homem lhe determina, que é, em suma, o domínio da natureza e o emprego dela para dominar os outros homens. Por causa da presença constante da dominação como objetivo humano, o racionalismo vê a tudo que não seja reduzível à calculabilidade e à utilidade como inimigos. O mito é rejeitado porque o “esclarecimento é totalitário”,5 ainda que a consciência mítica já contenha os princípios do esclarecimento. O mito contém as sutilezas teóricas para ambicionar a dominação da natureza, mesmo que seus métodos miméticos não sejam tão sofisticados. Adorno e Horkheimer encontram nas narrativas e práticas teológicas primitivas indícios desse imperativo, mas é na obra de Homero que analisarão mais detidamente essas nuances.

Na Odisseia, mais precisamente no duodécimo canto, Ulisses enfrenta o problema de atravessar o mar cheio de sereias. Astutamente, tampa o ouvido dos servos com cera e ordena que remem o mais forte possível, enquanto ele próprio se prende ao mastro do navio. Ao atravessarem, Ulisses atormentado pela beleza dos cânticos implora que o libertem, mas é tarde, porque seus condutores não podem ouvir mais nada. Para os filósofos, a narrativa mítica apresenta a dominação sob a forma de uma nova organização social, o trabalho. Aqui, Ulisses e os servos já desempenham os papeis sociais do opressor e do oprimido, e a vida inescapável que o processo da dominação lhes determina. Mas antes que cheguem a esse ponto, a consciência humana primitiva precisa fazer uma separação entre a natureza e as imposições externas das forças sobrenaturais. A dominação já não é mais realizada pelo processo mimético (a assimilação pela repetição) presente no ritual mágico, mas pela faculdade da abstração que separa o objeto do sujeito. A abstração ainda tem o papel de abrir caminho para a transformação do indivíduo em qualidades reproduzíveis nos mecanismos industriais. Por isso, Homero já aparece num momento tardio de transição entre o mito e o esclarecimento, em que a consciência intuí a objetividade da natureza, e uma vez despertado, reconhece o “poder como princípio de todas as relações”.6 Se até então, somente a figura divina podia exercer o domínio, o homem realiza a apoteose e tal como ela, que anteriormente havia antropomorfizado, se torna o senhor de si e dos outros.

O episódio não apresenta apenas um exemplo do entrelaçamento entre mito, trabalho e dominação, como também apresenta o próprio processo da dialética do esclarecimento. A situação descreve o retrocesso que o esclarecimento está sujeito. Se Ulisses está preso impotentemente ao processo que ele mesmo pôs em movimento, o mesmo se dá com o esclarecimento, que em sua cruzada para subjugar o mito volta-se inexoravelmente sobre si e converte-se em mito. A dominação “totalitária” exercida por ele se transforma no dogmatismo irreflexivo tal como presente na estrutura mitológica, pois o pensamento é coisificado e sua capacidade de refletir internamente é substituída pela percepção do imediatamente dado nos sentidos.

O factual tem a última palavra, o conhecimento restringe-se à sua repetição, o pensamento transforma-se na mera tautologia. Quanto mais a maquinaria do pensamento subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta com essa reprodução. Desse modo, o esclarecimento regride à mitologia da qual jamais soube escapar. Pois, em suas figuras, a mitologia refletira a essência da ordem existente – o processo cíclico, o destino, a dominação do mundo – como a verdade e abdicara da esperança.7

Assim, o positivismo, o ápice do esclarecimento, ao reduzir a natureza em fórmulas abstratas, em virtude da previsibilidade das leis universais, demonstra a repetição do método mimético que intuí os fenômenos da mesma forma que os primitivos associavam a mudança da primavera e outono com o rapto de Perséfone.

Como deve ter ficado evidente, o resultado da passagem do mito para o esclarecimento e o retorno do segundo ao primeiro demonstra o substrato da dominação que continuará vigorar efetivamente no capitalismo. Todavia, na análise que fazem da obra de Sade revelam a nudez da violência que o fascismo exerceria no século XX. O fascismo é o anseio pela conservação através da disputa do poder. Assim como a “industrial cultural”, que já havia oferecido as ferramentas de controle das massas, o fascismo compartilha a tendência de se expandir totalitariamente; a diferença é que agora, canalizado pelo racismo, ele encontra nos judeus o bode expiatório para lançar o seu terror. “O fascismo também é totalitário na medida em que se esforça por colocar diretamente a serviço da dominação a própria rebelião da natureza reprimida contra essa dominação.”8 A posição peculiar dos judeus na sociedade atraí sobre seu encalço o anti-semitismo e o consequente ódio, que alimentará a “sementeira da nova barbárie”, isto é, o momento em que a consciência, cega pelo desejo da opressão, reencontra o estado de natureza e retorna à pratica mimética do sacrifício sanguinolento.


*Como um tratamento crítico completo do livro, devido as circunstâncias, excederia os limites do atual post, trata-se de uma tentativa de interpretá-lo objetivamente, e por isso, deve se atentar para o fato que não é o endosso da tese dos autores.


1A distinção entre o Iluminismo e Esclarecimento é importante porque para ambos o processo dialético é anterior ao próprio período do movimento iluminista e estaria presente desde os primórdios do pensamento mítico.

2ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p.19, destaque nosso

3Ibid., p. 82-3

4Bonassa (cf. BONASSA, Elvis Cesar. A dialética do ofuscamento. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, São Paulo, n.3, p.5-20, nov. 1997) afirma que essa análise de cunho hobbesiana (ou nietzschiana) é redutora porque haveria uma distinção entre esclarecimento e razão, da qual não dá maiores explicações. E de fato, o esclarecimento é um processo histórico de relação entre humanidade e natureza, mas o processo de desencantamento do mundo remete à razão, e consequentemente, à conservação. Por isso, a análise não é exclusiva da razão. O trecho citado deixa a entender que o próprio esclarecimento é determinado pelo elemento da “dominação totalitária”, que nos remete, por fim, a Hobbes. Se valer da ambiguidade do texto para salvá-lo é obliterar o próprio princípio que lhe dá sentido. Não, a forma que os dois recusam o reducionismo à essência humana perversa é justamente pela emancipação da dominação.

5ADORNO & HORKHEIMER, op. cit., p.22

6Ibid., p.24

7Ibid., p.39

8Ibid., p.172

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